terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Atravessar

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"É o tempo da travessia.
E se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre,
à margem de nós mesmos."
(Fernando Pessoa)
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Existir é, hoje, chegar e partir;
Permitir que outros caminhos nos trespassem;
Saber-se sempre em encruzilhada;
Sobrepor à outra uma nova travessia;
Transpor muralhas no meio do caminho,
e ver-se pedra – atravessada - no caminho de alguém;
Fazer-se atalho, caminho oposto, contramão, talvez.
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Sempre andei por caminhos que se atravessam.
Hoje, existir é atravessar.
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quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Sem tempo

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"Arte.
Das tripas,
coração."
(Adélia Prado)
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Os meus dias mais urgentes, são os que mais pedem poesia.
Justo o tempo que eu não tenho é o que me sobra para escrever.
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quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Busca

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"O melhor ainda não foi escrito.
O melhor está nas entrelinhas."
(Clarice Lispector)
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O verso que busco, incessante, é aquele que não escrevi.
Verso não escrito, e por conseqüência, não lido, é verso que desconheço.

............Se não sei o que procuro, nunca o poderei encontrar.

Por vezes, leio um verso alheio e tenho a sensação de que ali estava ele,
escrito por outro, perdido para sempre.
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Em outras, quase que o reconheço em novos
– ou antigos – versos meus,
mas a impressão logo se desfaz
e retomo a busca.

É a busca que me faz tanto ler e escrever,
e estes quase-encontros-com-o-verso-perfeito
são o que dão cor a cada palavra,
que me fazem ansiar pela próxima frase.

O meu maior medo é encontrá-lo um dia.
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........................................................Tenho pavor de ser feliz.
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sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Aguardando

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"A solução para esse absurdo que se chama “eu existo”,
a solução é amar um outro ser que,
este, nós compreendemos que exista."
(Clarice Lispector)
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Troquei a espera ansiosa, pelo aguardo.
Mas aguardando, ainda não existo.

Quem espera, volta-se para o futuro...
Esperar... ter esperança... acreditar que aqui não se tem, mas que um dia se terá.

Desconfiada do futuro, não pude mais esperar.
Hoje, aguardo.

Aguardar, estar a guardar.
A espera coloca uma vida possível num futuro que talvez não possa ser;
o aguardo guarda o melhor de mim para ser vivido depois.

Minha existência e meu prazer agora estão comigo,
guardados no fundo das minhas gavetas
e não pendurados na parede, no calendário.

Mas por quanto tempo se deve guardar um prazer ou uma existência?
Guardados emboloram, envelhecem às vezes mais do que aquilo que usamos.
Envelhecem desperdiçados, não desfrutados...

Há um momento para se sentir, um momento em que o gozo vem,
não podemos guardá-lo para muito depois...

Por enquanto, guardo o melhor de mim, e ele ainda é fresco, mas até quando guardarei?
Até quando aguardarei?

A espera podia ser eterna, e eu jamais saberia que nunca existi,
o aguardo não:
um dia vou ter que abrir minhas gavetas.
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quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Não ter religião

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"Crê nos que buscam a verdade,
duvida dos que a encontraram."
(André Gide)
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Eu já tive religião.
Hoje, não tenho mais.
Não ter religião
é conviver com a insuficiência
das poucas respostas que temos.
A religião responde todas as perguntas.
Não deixa espaço para a dúvida.


Eu já amei...
“Quem ama tudo desculpa, tudo crê, tudo espera tudo suporta.”

Eu já fui criança...
“falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança,
mas então me tornei...”

Hoje, não amo, duvido.
Quem duvida também desculpa, crê, espera e suporta.

Porém, não tudo:
somente a própria dúvida
- inimiga da fé e falsa amiga da ciência.
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quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Mitos

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"Quando você olhar para algum corpo
Que não seja tão perfeito,
Olhe direito,
Pois cada olhar contém o seu defeito."
(Fernando Catatau)
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Dizemos:

Crianças são desobedientes.
Jovens, rebeldes.
Velhos, rabugentos.

- Ninguém, a seu tempo, escuta o que o outro diz.

Crianças são ingênuas.
Jovens, idealistas.
Velhos, senis.

- Ninguém, a seu tempo, enxerga a realidade.

Então, a cada geração,
o mundo permanece o mesmo.

E seguimos, nós, adultos, ocupados todo o tempo
com nossas máquinas de construir verdades.
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Nômade

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"Caminante son tus huellas
el camino y nada más.
Caminante no hay caminos
se hace camino al andar."
(Antonio Machado)
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Sou nômade.

Nômade, alojada numa mesma terra,
onde não correm leite e mel,
mas em que nunca me faltou comida ou teto.

Terra confortável,
...que pode matar o nômade que eu sou.

"Parta"
- grito.

Insisto por conhecer e habitar terras distantes,
Falar as línguas e os costumes de outros povos.

Mas esse conforto...
...me afunda em um sofá macio...

Preguiçosa demais
para me dar ouvidos e seguir viagem,
permaneço.

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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Alinhavo

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"Cada manhã, ao acordarmos, em geral fracos
e apenas semiconscientes,seguramos em nossas mãos
apenas algumas franjas da tapeçaria da existência da vida,
tal como o esquecimento a teceu para nós."
(Walter Benjamin)
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Na ponta dos dedos, firma-se a agulha, com cuidado.
(com o cuidado das maõs que desenham letras)
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Da ponta da língua, solta-se a linha, com saliva.
(com a saliva da boca que pronuncia e canta)
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Com destreza e paciência, se faz a passagem:
linha molhada, no estreito espaço da agulha,
agulha firme que alinhava o sensível tecido.
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Palavra-agulha que alinhava e tece o que eu sou,
que entra e sai de mim,
me perfura,
me transpassa,
me repara e me remenda...
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Palavra-agulha que une um e outro retalho,
que compõe o meu vestido,
e me veste de tantos outros.
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Com a sempre exigida delicadeza, se faz a passagem:
me desfio,
e embebida na saliva,
penetro o estreito espaço do papel,
agulha que me leva
ao vasto espaço do tecido do outro.
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quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O futuro é sempre incerto

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"Eu bato o portão sem fazer alarde,
Eu levo a carteira de identidade,
Uma saideira, muita saudade,
E a leve impressão de que já vou tarde."
(Chico Buarque)
o

Para contar a história inteira é preciso, de início, elaborar um final.


- Nada... Eu queria que você tivesse ouvido.
- Então, você deveria me dizer.

Em silêncio, repito o que ouvi na primeira vez em que nos falamos.
Termino, como comecei.
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................................................................................Fim.
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................................O futuro é sempre incerto................................
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Nossas mãos se tocaram com cuidado, de repente, por um acaso que a gente provocou.
E aceitamos, em silêncio, um e outro, andarmos de mãos dadas, como se fossemos velhos conhecidos, enquanto, também não por acaso, avisávamos um para o outro que acabáramos de nos conhecer.
As mãos seguravam-se firmes, mas nem elas mesmas sabiam o porquê de agirem assim, e tímidas, soltaram-se, aos poucos, até que apenas as pontas dos dedos encontravam-se umas com as outras.
Seus dedos estavam na ponta da minha mão, minha mão, na ponta de seus dedos.
Um convite para sentar.
O banco de concreto no meio do jardim.
Tanta conversa para tão pouco assunto.
Tanto assunto para tão pouco (e ao mesmo tempo, tanto) tempo.
Pra que falar?
Um beijo na minha testa, nossas mãos estavam juntas,
um beijo na bochecha, a certeza de que nos beijaríamos:
nosso beijo, na boca.
Uma boca na boca do outro.
E os dedos, que as nossas mãos soltavam, nos tocavam com carinho.
Carinho: foi essa palavra que ouvi, enquanto a gente não falava nada.

- A gente nunca falou...
- ...te amo?
- ...
- ...volta?
-...
- ...adeus?
- ...
- Fala!
- Nada... Eu queria que você tivesse ouvido.
- Então, você deveria me dizer.

Em silêncio, repito o que ouvi na primeira vez em que nos falamos.
Termino, como comecei.

................................................................................Fim.
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sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Coincidência

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"...e em mim o campo de silêncios e silêncios -
esse vazio cristalizado que tem dentro de si
espaço para se ir para sempre sem parar:
pois espelho é o espaço mais profundo que existe."
(Clarice Lispector)
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...
Coincidência: incidência de dois ou mais eventos em um mesmo tempo ou espaço...
...incidência de um mesmo evento em dois ou mais tempos ou espaços...

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Eu vivi.
Ele sonhou.
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Eu silenciei.
Ele escreveu.
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Ele expôs.
Eu assisti.
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Público dele:
espectadora de mim.
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Pois eram minhas aquelas palavras, aqueles gestos...
até as pausas eram minhas!
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O meu silêncio, na boca dele...

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Silenciar era um direito que eu me dava,
até a noite em que ele estreou o meu segredo.
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Onde foi que ele me ouviu?
Quem me sonhou no sonho dele?
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Não sei...
mas ele me contou a minha história,
e já não posso fingir que não vivi.
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quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Amizade

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"Amigo, pra mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos os sacrifícios."
(Guimarães Rosa)
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Apenas amigos.
Mas a que penas?
Amigos, sem sangue do meu sangue, sem aliança de compromisso.

Para poder procurar de madrugada.
Para poder não procurar nunca mais...

...e procurar – ou encontrar – por acaso – depois de anos...
e ser lembrado.

Amigo para poder ser lembrado:
o aniversário, o segredo, o gosto.

Para poder não ser para sempre.
Para poder sempre voltar:
para o teu prazer...

Prazer, esse é o meu amigo.
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sábado, 30 de agosto de 2008

Pacto

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"O silêncio é tal que nem o pensamento pensa."
(Clarice Lispector)
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Há entre nós uma única regra: não grite.
O silêncio é entre nós um direito.
O silêncio é para nós um dever.
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Mas tudo que é vivo quebra a regra e grita.
E não há cadeia que silencie o grito de quem rompeu com a Lei:
o grito da criança, do louco, do bandido;
o grito que irrita, que desorganiza, que apavora...
grito que aterroriza para sempre os ouvidos dos obedientes,
até que chegue para eles o dia do grito que ninguém cala,
e rompam toda a fidelidade, com a mudez sonora da agonia que lhes couber.
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Só quem ouve esse último grito, escuta o que uma vida inteira emudece...
e enforcado,
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grita!
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sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Tempo

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"...desacreditar do mistério, acelerar o tempo.
Acima de tudo, somos indelicados com o tempo."
(Maria Rita Kehl)
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Passa o menino-homem pela vida, correndo.
- Onde pensa que vai com tanta pressa? - pergunta o tempo, com uma voz tão alta que lhe interrompe.
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Interrompido, ele responde.
Toda parada já é em si uma resposta, cheia de silêncio.
E o silêncio é a mais sincera das respostas.
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Com sinceridade, o menino-homem silencia esse "não sei" e percebe que um "...eu nunca tinha parado para pensar..." justificaria com humildade a ignorância interrompida, filha de sua velocidade.
Ele tanto corre, que nunca sabe.
Nunca sabe onde pensa que vai...
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Corre, não pensa.
Corre, não vai...
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Foi a pressa do menino-homem, que fez o tempo lhe parar.
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Ou se corre ou se vai...
Ir exige tempo e, acima de tudo, delicadeza.
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quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O eu pintor

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"Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas."
(Carlos Pena Filho)
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Se o mundo vai bem ou mal, sou eu que sei.
O mundo é desenho em branco - quem pinta sou eu.
Artista leva tempo - talvez a vida inteira - para aprender a lidar com tinta.
Às vezes quer pintar o sol de amarelo e borra as nuvens: o céu fica todo amarelo e já nem parece céu ou parece pôr-do-sol ou noite de ano-novo ou céu em tempo de guerra...

Mas de que importa?
O que parece o céu que eu borro com meu pincel, sou eu que sei.
Outros verão outros céus amarelos.
Se eu pinto verde o caule da flor e o sangue da mão da menina de vermelho, lembrando de colori-la com a tinta cor da pele, provo minha sabedoria, mas quando toda laranja que eu como é laranja, as violetas na minha janela, sempre violetas e a única rosa de que sou capaz é a cor de rosa, então adoeci.
É tênue, e ao mesmo tempo evidente, o que distingue o artista sábio do artista que enlouqueceu.
Conhecer os limites do meu desenho, dá liberdade ao meu pincel: se sou livre, minha laranja pode ser azul, minhas violetas cor de abóbora e as rosas vermelhas, brancas, amarelas e até lilases.
As cores do meu mundo, sou eu que sei.
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segunda-feira, 28 de julho de 2008

Correspondência

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"O traço de uma mão amiga, impressa nas páginas,
proporciona o que há de mais doce na presença:
reconhecer."
(M. Foucault)
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Amor correspondido, por correspondência.
Posso ouvir, de longe, aquilo que sussurra em meu ouvido, por escrito.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Fluência

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Não há nada que epigrafe este meu sonho.
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Estava em muitos espaços ao mesmo tempo.
Eu era a água, sem forma, em um estado líquido, sem cheiro, gosto ou cor. Eu era água e matava sedes. Vinham todos beber de mim e eu me oferecia; me espalhava e não tinha limites. Eu não era mar, oceano; eu era fio de água, água que caiu por acaso no chão, que escorre, que se multiplica, que se encolhe para caber em cada pequeno vão e chegar ao mais baixo, ao mais fundo, ao fim. Água que sem saber aonde vai, segue a gravidade: suave, leve, molhada.
Desperta, eu quis saber de mim. Para onde iria eu, se todos os lugares me chamavam?
Senti o peso das minhas pernas que não aceitam bifurcações.
Senti o impulso travado dos dois braços - um direito e outro esquerdo - ligados a um tronco só. Um tronco cheio de intestinos, estômagos, fígados e rins.
Um tronco com dois pulmões e um coração.
Senti meus olhos pesados. Dois olhos estrábicos neste rosto que só se vira em uma direção.
Tudo me vinha em dois: cheiros, sons e cores; e só uma voz podia sair de mim.
Meu coração bateu pendendo à esquerda. Meus pulmões respiraram em uníssono. E a cabeça? Sonolenta, tinha que dar conta de um corpo todo direito e esquerdo. Logo ela, que era tão centrada!
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quarta-feira, 25 de junho de 2008

Paciência...

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"Tomar conta do mundo exige também muita paciência:
tenho que esperar pelo dia em que me apareça uma formiga."
(Clarice Lispector)
"E até quando o corpo pede um pouco mais de alma
(...)Eu finjo ter paciência..."
(Lenine)

Um dia ouvi dizer que é preciso ter serenidade para aceitar as coisas que não podemos mudar.

Confesso: fingi que acreditei. E o que me aflige é conviver com essa farsa. Não acredito nas coisas que não podemos mudar, por isso não tenho paciência quando elas teimam em aparecer, fingindo que existem.
Para ser sincera - já que reclamei da minha mentira - só conheço uma coisa que não se pode mudar, que é perene, que é em si, que é essencial, eterna, e que pede de nós essa serenidade, essa aceitação, essa paciência. Ela, eu aceito, serenamente!

Curioso: os que mais pregam que as coisas que não podemos mudar existem, são os mesmos que afirmam piamente que essa única coisa que permanece para sempre não existe e não passa de um momento, de uma passagem, de uma transição.

Perdi a paciência!
Qual? Aquela que eu nunca tive?
Onde? Por causa de quem?
O que é que me impede de fingir que eu aceito? O que é que me faz descer do salto, do palco, sair do papel de quem aceita algumas coisas como imutáveis e passíveis de serem aceitas com serenidade?

Confissão: são aqueles que não mudam!
Eu não consigo me fingir paciente em relação aquilo que não muda. Eu tenho serenidade e paciência, sim, mas é para acompanhar a mudança, demore ela o quanto demorar, vá por qual caminho for...mesmo que mude para o pior... eu espero o dia chegar, serena e paciente! Degustando cada pedaço suculento da ansiedade que me acompanha...

Eu espero, desde que caminhando. Não me peça para esperar sentado; para ver o mundo sentado..."esperando a chuva passar..." Eu espero no movimento da dança, o tempo da fala de cada ator, a hora em que a formiga entrará em cena. Eu espero porque eu sei que as formigas andam em fila, e se comunicam antes de mudarem de direção... Eu espero porque eu sei que caiu uma peça de dominó lá atrás e demora alguns minutos até que efeito repercuta aqui. Mas eu não gosto de ver o jogo parado, de ficar ouvindo o silêncio dos que não tem nada a dizer... Eu gosto do silêncio que precede a fala, ou que paira depois do amor... com ele eu tenho toda a paciência que o mundo exige, que a vida e a alma pedem.

Paciência morta eu não tenho. Tenho paciência com a morte, sim, e com todo o nada que vem depois dela. Só ela é digna dessa serenidade, porque ela é a Morte, ela é o momento de ficar deitado para sempre, de não ser mais, de silenciar. Ela é bonita por causa da serenidade que ela contém. Eu não tenho paciência com os que tiram essa beleza dela, e a enchem de atividade: de toda atividade que uma vida em silêncio não conhecia.

O que ainda não morreu, por favor, que esteja vivo! Caso contrário, não vou fingir: eu não tenho paciência!

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segunda-feira, 16 de junho de 2008

Felicidade

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"Ser feliz é poder tomar consciência de si mesmo sem susto."
(W. Benjamin)
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No meio do caminho entre o centro da cidade e a privacidade do meu quarto eu tenho me dado conta de mim. Sozinha no carro, parada no trânsito ou em trânsito na estrada, com o rádio ligado me inundando de MPB, eu me fecho (portas e vidros sempre fechados, seguindo a recomendação repetida da minha mãe) para balanço.
E eu me balanço, me pondero, me percebo... e quase sempre dou risada, ou canto alto, ou digo algo como: ai, ai, ai... Sozinha, sou obrigada a conversar comigo, eu que detesto parar de falar. Quando eu me chamo, chamo uma outra: a rachel... Grandes amigos me chamam assim. Meu nome em outra língua, mas ainda assim meu nome.
Quando eu chamo a rachel, ou quando eu refaço caminhos, eu me encontro e posso me avaliar. Tenho tirado boas notas. Sou nerds até na vida.
Mas de vez em quando eu ainda me assusto, mas não é mais aquele susto de quem abriu uma porta e deu de cara com um desconhecido: "Quem é você?" ou "Eu não sabia que você estava aí!!!". Eu levo aquele susto que as crianças dão na gente quando estão crescendo. É o susto acompanhado de um sorriso, o susto que a gente leva quando abre a porta e atrás dela tem uma festa-surpresa.
Tem uma festa-surpresa dentro de mim...
Será que se eu me assusto assim alegre é porque não sou feliz? Não me importa!
Eu não quero essa felicidade sem susto. É essa capacidade de se assustar - comigo mesma - que me faz feliz. Porque não é susto de medo - Benjamin tem razão: quem se assusta com o espelho deve mesmo estar feio! - é susto de surpresa, de "essa rachel, não tem jeito...sempre apronta...ai, ai, ai..." para se dizer balançando a cabeça, com sorriso nos lábios e com a certeza de que cada vez é mais gostoso ver seus olhos no retrovisor.
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quinta-feira, 5 de junho de 2008

Anunciação

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"Tu vens... Eu já escuto os teus sinais..."
(Alceu Valença)
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Há o tempo da espera e o da chegada: entre eles há a anunciação.
Há o tempo em que se fica sentado na estação, às vezes saboreando um livro, às vezes namorando um tédio ou apenas se irritando com a demora do trem e há o tempo em que o trem pára e abre suas portas. Entre estes dois há um trem chegando, ainda ao longe e há pessoas que se agitam sobre a plataforma pois já o avistaram, ou o ouviram, ou o pressentiram...
Esse é o tempo mais delicado, o tempo em que as portas do palácio se abrem e as trombetas tocam...nem o Rei sabe quem virá. Mas alguém virá e isso é certo.
Esse é o tempo em que o anjo entra e acorda o profeta.
Antes havia só a fé e depois haverá a profecia.
Apertem os cintos...que ruflem os tambores...o próximo!
A espera acabou e eis que os presentes se anunciam. Mas que barulho é esse? Quem é que está por trás da porta entreaberta? De quem são esses passos que...?
Tu vens... e eu já te escuto, mas ainda não sei quem és.
Chegou a minha vez, ou talvez só mais uma nova vez no meu caminho.
Meus ouvidos atentos já conhecem a tua presença. Olhos e mãos sempre tem que esperar um pouco mais...e nós somos só olhos e mãos...
A espera foi longa mas o triste é esperar sozinho. Agora eu já tenho teu sussurro e teu perfume para me fazerem companhia.
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terça-feira, 27 de maio de 2008

Na corda bamba

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"Eu sou uma pergunta." (Clarice Lispector)
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Estava eu caminhando entre um compromisso e outro: aprender uma outra língua, organizar uma nova festa, fazer uma revolução - quando vejo que há muito que minha agenda é a mesma. Embora a capa mude a cada ano, o conteúdo é sempre o mesmo: eu estudo, eu organizo, eu tento revolucionar; entro em contato com o que é diferente, me divirto e tento revolucionar; eu aprendo, desaprendo, e tento...
Eu me senti sozinha e achei absurdo. Cada dia mais acompanhada, mais bem acompanhada, tão acompanhada que nem tenho tido tempo para as minhas companhias! Por que sentir-se sozinha? Porque quero justo a companhia daqueles que não estão mais aqui - eu sei quem são, sei onde estão e sei que estão longe. Só eles entenderiam o que eu quero - e preciso - dizer.
Daí eu penso que outros podem vir , não substituí-los, mas unirem-se a eles, serem novos na minha curta lista dos que entendem o que eu olho - porque com eles eu nunca precisei falar. Serem outros dentre os que eu amo com admiração e cumplicidade. Eu amei muitos outros, admirei outros tantos e fui cúmplice de alguns. Mas amar - sempre - com admiração e cumplicidade só a eles. E eles estão tão longe, seja no tempo, seja no espaço...
Então eu me sinto sozinha.
Mas é preciso continuar organizando, aprendendo, revolucionando... pois meu próximo compromisso me espera... E eu que há muito tenho querido ficar em silêncio, deixar que outros organizem a revolução ou que as coisas simplesmente continuem como estão... Aprender em silêncio. Não ter nem mesmo que organizar meu futuro ou que revolucionar a minha vida.
É difícil planejar tão longe deles. Porque embora os meus roteiros não coincidam com os deles eu tento sempre planejar que os nossos caminhos se cruzem outra vez. Mas eu sei que só nos meus caminhos eu encontro os meus amores cúmplices e admiráveis.
Se eu não amasse tanto, seria mais fácil caminhar, mas não teria o frio na barriga, não teriam os nós que a minha vida tem...eu não seria tão única e tão bamba.
Foi então que eu me senti na corda bamba, sem eles ou com eles - porque não houve tempo em que precisasse mais me equilibrar, senão aquele em que eu estive acompanhada dos meus amores - na corda bamba sempre. Eu só sou na corda bamba, na dúvida, no quase, no ponto de interrogação, nas reticências, na incerteza, no calafrio...nas várias perguntas.
Cheguei a mesma conclusão de Clarice, na impressão de que chegaria lá sozinha, ainda que ela não tivesse pensado essa frase antes. Será que eu chegaria a saber algo sobre mim sozinha, sem que alguém já o tivesse sabido antes? Isso eu nunca vou saber...
Eu não conheci a Clarice, mas a amaria com cumplicidade e admiração se a tivesse conhecido.
Meus amores, eu estou com saudade de vocês!
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segunda-feira, 19 de maio de 2008

Viva

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"Gostar de estar vivo dói." (Clarice Lispector)
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Tenho escrito mais, mas guardado meus escritos para mim.
Tenho me distribuido mais, é bem verdade, vivido de forma mais transparente, mas ainda assim, guardado mais de mim para mim. Tenho me degustado mais. E gosto do meu sabor. Eu que sempre me dei à prova, agora me experimento...e saboreio uma Raquel que só os outros conheciam.
Quando escrevo percebo o que faço, é como se eu contasse meu segredo para mim. Tenho dado aos outros aquilo que eu guardara comigo e me lambuzado, sozinha, com aquilo que antes não sobrava para mim. Eu troquei a Raquel pública pela particular. Eu que era minha amiga ou minha parente, agora sou minha namorada ou amante...mas espere! Ainda não me casei...e nem sei se quero casar comigo.
Talvez seja bom me amar descomprometidamente, assim eu não sou obrigada a me amar para sempre e nem tenho a obrigação de ser fiel a mim. Bom é estar assim, ficando comigo, me conhecendo, curtindo bons momentos... sozinha.
Tão rodeada de gente e tão só. Tão só e tão bem acompanhada. Para uma depressão falta só o mais importante: a tristeza. Começo a achar que eu nunca estou de mau humor, porque há tempos não me vejo assim...
Felicidade serena, agitação tranquila, prazer sem compromisso... Fase nova, com certeza. Acaba a época de transição entre uma transição e outra. A transição é nova agora, faz-se um novo jeito de se fazer o caminho... Caminhando, sempre, cada vez carregando mais bagagem, cada vez mais acompanhada de mim.
Mas ainda dói...ainda bem!
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sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Voltei...

"A despeito da vida que acorrente.
Volta-se, volta-se para a sinceridade
Volta-se sempre, tarde ou de repente
Na alegria ou na infelicidade."
(Vinícius de Moraes)
Pois...
Prometi (a quem mais do que a mim mesma?) que escreveria com freqüência; que registraria minhas impressões da vida no Porto...e não cumpri. Agora voltei. Quatro meses depois da última postagem, voltei a escrever. Quase seis meses depois da minha partida, voltei para o Brasil, para a casa dos meus pais, para a minha vida real...
E por que agora torna-se novamente mais fácil escrever aqui? Talvez porque o que eu vivi lá não caiba exatamente nas palavras que eu sei escrever... Cabe, sim, nas que eu sei falar - pois pede sorriso, olhos brilhando, pede gesto - e nas que eu espero saber guardar em mim.
Eu volto, e não me proponho agora a escrever aqui sempre, embora hoje eu saiba que essa vida que eu vou levando aqui não seja menos digna de ser lembrada que a que eu deixei lá. Mas quem sabe desta vez, sem propósito, eu escreva? Para mim, é sempre mais fácil cumprir as promessas que não faço.
Os últimos meses foram ótimos, a experiência, em todos os sentidos, vivida de forma completa. A dor que me apertava o peito e a garganta e insistia em sair em forma de lágrima no meu último dia no Porto era forte, mas as boas vindas desfizeram qualquer nó.
A vida continuou aqui sem mim - e continua para quem eu deixei lá no Porto - mas eu fiz falta - do mesmo jeito que muitos fizeram - e fazem - falta pra mim.
Agora é acordar do sonho, e retomar a minha realidade, mas não voltei a mesma. O que eu vivi lá, eu trouxe para cá. Agora a vida acordada sempre vai ter um pouquinho do sabor de sonho, assim, ao menos, eu espero que seja.
Hoje eu sei o que é saudade. Saudade do passado e do futuro, de quem eu vou ver logo, de quem eu nunca mais vou ver, dos momentos que não vão se repetir, misturada a uma saudade daqules que eu ainda nem conheço, do tanto que eu sei que tem pela frente.
Eu voltei.
E voltei com muitas histórias para contar, com experiências para compartilhar, com planos para pôr em concreto, com questões para desvendar, e com perguntas, com muitas perguntas.
Eu sempre gostei dos pontos de interrogação.
O bom é ver que eu tenho menos pressa em respondê-las agora. Não preciso mais correr atrás não sei de quê. Agora eu posso andar mais devagar...devagar, mas não sempre, porque tudo que eu vivi teve começo, meio e fim. E eu sei que as coisas sempre terminam assim.