quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Mitos

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"Quando você olhar para algum corpo
Que não seja tão perfeito,
Olhe direito,
Pois cada olhar contém o seu defeito."
(Fernando Catatau)
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Dizemos:

Crianças são desobedientes.
Jovens, rebeldes.
Velhos, rabugentos.

- Ninguém, a seu tempo, escuta o que o outro diz.

Crianças são ingênuas.
Jovens, idealistas.
Velhos, senis.

- Ninguém, a seu tempo, enxerga a realidade.

Então, a cada geração,
o mundo permanece o mesmo.

E seguimos, nós, adultos, ocupados todo o tempo
com nossas máquinas de construir verdades.
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Nômade

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"Caminante son tus huellas
el camino y nada más.
Caminante no hay caminos
se hace camino al andar."
(Antonio Machado)
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Sou nômade.

Nômade, alojada numa mesma terra,
onde não correm leite e mel,
mas em que nunca me faltou comida ou teto.

Terra confortável,
...que pode matar o nômade que eu sou.

"Parta"
- grito.

Insisto por conhecer e habitar terras distantes,
Falar as línguas e os costumes de outros povos.

Mas esse conforto...
...me afunda em um sofá macio...

Preguiçosa demais
para me dar ouvidos e seguir viagem,
permaneço.

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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Alinhavo

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"Cada manhã, ao acordarmos, em geral fracos
e apenas semiconscientes,seguramos em nossas mãos
apenas algumas franjas da tapeçaria da existência da vida,
tal como o esquecimento a teceu para nós."
(Walter Benjamin)
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Na ponta dos dedos, firma-se a agulha, com cuidado.
(com o cuidado das maõs que desenham letras)
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Da ponta da língua, solta-se a linha, com saliva.
(com a saliva da boca que pronuncia e canta)
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Com destreza e paciência, se faz a passagem:
linha molhada, no estreito espaço da agulha,
agulha firme que alinhava o sensível tecido.
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Palavra-agulha que alinhava e tece o que eu sou,
que entra e sai de mim,
me perfura,
me transpassa,
me repara e me remenda...
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Palavra-agulha que une um e outro retalho,
que compõe o meu vestido,
e me veste de tantos outros.
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Com a sempre exigida delicadeza, se faz a passagem:
me desfio,
e embebida na saliva,
penetro o estreito espaço do papel,
agulha que me leva
ao vasto espaço do tecido do outro.
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