sábado, 23 de março de 2013

Memento


"E criarão artes numerosas, e terão sumos artistas 
e jamais alcançarão a única arte que implantei no Éden 
-a arte de ser biologicamente feliz."
(Monteiro Lobato)

"Para o ser humano, viver é pouco."
(Céu)



Lembra-te da lição dos lírios:
"Basta a cada dia o seu próprio mal".

Vive cada dia e, nos intervalos, morre.
Morre e deixa que morram todos aqueles que não são teus 
- e morrerão todos.

Não, tu não és o dono e proprietário.
Deixa que levem teus bens.

Antes, havia o medo 
da fome, 
e de não haver, chegada à noite, 
abrigo para o sono.

Hoje, persistem o medo 
da fome
e o medo de não haver, 
chegada à noite, 
abrigo para o sono.

E a eles se unem o medo de que a História não termine bem,
de que a perfuração da Terra alcance o centro,
de que o foguete estoure a Lua,
de que céus e vulcões se voltem contra nós.

Não te inquietes,
nada haverá de mais terrível que o dia de hoje,
e a persistência da fome, do sono e da morte,
que eternamente nos salvará.

Tem fome: come.
Tem sono: dorme.
Recebe a vida: morre,
e deixa que os mortos enterrem seus mortos.

Lembra-te da lição dos lírios:
nasceste do gozo de teus pais e da morte de teus avós.

Terminado o carnaval,
te despirás da fantasia:
nasceste pó, alimentaste o pó e 
ao mesmo pó de todos os lírios, em um destes dias 
- sem fome e sem medo - 
tu haverás de tornar.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Dores de parto


"...era fácil se perder por entre os sonhos,
e deixar o coração sangrando até enlouquecer."
(Filipe Catto)



Com força, ela batia e repetia,
com a crueldade das vozes que ressoam de dentro:

“Engole esse choro."
“Engole esse choro, menina.”
“Engole-esse-choro!”

Sabedoria de mãe:
“Engole esse choro! Rápido, engole esse choro!”

... que dói demais te ouvir chorar assim.

“Tudo tem limite!”

Engoli,
engoli.

Pela faringe desceu amargo,
alojou-se no meu pulmão.
Fez faltar-me o fôlego.
Fez faltar-me a voz.

Por anos, tenho gestado o choro engolido.
Por anos, em silêncio, o alimento nos pulmões.

Já me vêm as contrações, há alguns dias.

Um dia, em um ato de coragem involuntária,
por instinto, farei força.

Sim, as dores de parto os farão nascer.

Nesse dia, pedirei a ela que retorne e me venha ensinar.
Sozinha, com o grito nas mãos,
esperarei que ela me salve, a mim e ao recém-gritado.

Espero que ela venha antes
que em desespero dele eu me desfaça.

Espero que ela venha,
pois não saberei contê-lo,
pois em meus braços ele gritará demais.

Espero que ela venha,
me contenha,
nos interdite,
ou me ensine como bater e gritar até que ele se engula.

Sozinha, não saberei impor os limites.
E se ele os atravessar, sangraremos para sempre.

Uma coisa, o tempo me ensinou:
nossos gritos são gestados nos pulmões.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Narciso


"Quero o que está em mim; posse que me faz pobre.
Oh! Se eu pudesse separar-me de meu corpo!
Desejo insólito: querer longe o que amamos!"

(Ovídio)


À natureza, não foi dada a honra
de conhecer seu próprio espetáculo,
pois a si mesmo,
nada pode ser espetacular.

O espetáculo só é grandioso ao olhar do outro.

A natureza somente a seu reflexo conhece,
sem susto, sem desejo, sem paixão.

Sem possuir-se, a natureza contenta-se em conter-se:
desconhecida de si, estranha, oculta.

Mas "é que Narciso acha feio o que não é espelho"
e a seu olhar nada mais pode ser espetacular.
Entorpecido de si, busca nele o espetáculo,
e especula o universo refletido, que encontra ao fundo do espelho.

Sim, seu corpo envolve o espetáculo.
Estrelas incandescentes brilham dentro de si.

Insuportável poder,
insuportável prazer lhe garante essa beleza.
Insuportável pobreza, terrível espetáculo,
reconhecer dentro de si, o universo,
e não poder admirar-se em tudo o que há no mundo,
pois tudo o que há no mundo já é reflexo seu.

Individual e cruel é a sina de Narciso:
ser o outro,
saber-se o outro,
sem jamais o poder tocar.

Reconhecer-se no outro,
entorpecer-se do outro,
e ser incapaz de desejá-lo mais do que a si.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Religare

"'O reino de Deus está dentro de vós'. Este foi o ensinamento, o único ensinamento do mundo. Jesus falou assim, Buda falou assim, Hegel falou assim, cada um dentro da sua teologia. Para cada indivíduo, a única coisa importante no mundo é o seu próprio interior, sua alma, sua capacidade de amar. Quando esta está em ordem, pode-se comer canjica ou bolo, usar trapos ou jóias, então o mundo está em uníssono com a alma, é bom, está em ordem."

(Hermann Hesse) 

Há um elo quebrado dentro de mim.

Há dentro de mim duas metades do elo que me prenderá a vida
e me permitirá reconhecer os guias que me levarão ao destino e a Deus.

Uma terrível liberdade, deles me desvia,
e ao mesmo tempo, me aproxima.

Uma terrível liberdade me leva a experimentar a solidão:
não a solidão dos fracassados, acompanhados da multidão que os condena,
mas a solidão do caminho do herói que ainda não encontrou seus guias.

Há um elo quebrado dentro de mim
e esse elo é a chave para a terra prometida.

No outro reconhecerei a parte que me falta.
No outro reconhecerei o amor que devo ter por mim.

Amar ou enlouquecer, ou jamais encontrar a Deus.
Amar ou enlouquecer, ou o eterno pavor de ser feliz.

Sobre os meus estados de ausência

"Desde minha juventude, tenho o hábito de desaparecer de tempos em tempos e de mergulhar em outros mundos para refazer-me; então, costumavam procurar-me e, depois de algum tempo, declaravam-me desaparecido e, quando eu finalmente retornava sempre achava divertido ouvir os julgamentos da dita ciência sobre a minha pessoa e os meus "estados" de ausência ou sonolência."

(Hermann Hesse)



Afastar-se de si, e dos outros,
para, ausente, sobreviver:
de Eco o destino cumprir
sem corpo,
ou sem voz,
outra infância aceitar viver.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Fragmentos daquele seu segredo


É o preço da linha tênue: 
avistar ambos os mundos, sem jamais, de fato, os tocar.
(Janeiro/2013)


Por isso é tão triste não aprender a morte e ficar vagando por aí até morrer sem saber, acendendo vela, tocando sino, fazendo escândalo de susto de uma coisa tão bonita: de uma última página de livro, de última linha de história, que qualquer neto nascido pode recomeçar a contar.
(janeiro/2010)

Talvez tudo seja espelho.
Talvez tudo que eu olho, seja reflexo meu.
(outubro/2009)

É um perigo tropeçar com vela na mão: um descuido e ateia-se fogo a tudo.
(outubro/2009)

Também nosso sangue por vezes se perde,
também as construções desabam sobre nós.
(abril/2009)

O silêncio falava o quanto era ela impotente: 
ninguém pode pedir ao silêncio que se cale.
(março/2009)

Às vezes, aquilo que me falta é o que eu tenho de mais denso.
(fevereiro/2009)

Mais feliz do que aquele que acredita sem ver é aquele que observa.
(janeiro/2009)

Justo o tempo que eu não tenho é o que me sobra para escrever.
(dezembro/2008)

Não ter religião é conviver com a insuficiência das poucas respostas que temos.
(novembro/2008)

A espera coloca uma vida possível num futuro que talvez não possa ser;
o aguardo guarda o melhor de mim para ser vivido depois.

(novembro/2008)

Tenho pavor de ser feliz.
(novembro/2008)

Conhecer os limites do meu desenho, dá liberdade ao meu pincel: se sou livre, minha laranja pode ser azul, minhas violetas cor de abóbora e as rosas vermelhas, brancas, amarelas e até lilases.
As cores do meu mundo, sou eu que sei.

(agosto/2008)

E o silêncio é a mais sincera das respostas.
(agosto/2008)

Eu gosto do silêncio que precede a fala, ou que paira depois do amor... com ele eu tenho toda a paciência que o mundo exige, que a vida e a alma pedem.
(junho/2008)

Tem uma festa-surpresa dentro de mim...
(junho/2008)

Para uma depressão falta só o mais importante: a tristeza. (...) Mas ainda dói...ainda bem!
(maio/2008)

Eu só sou na corda bamba, na dúvida, no quase, no ponto de interrogação, nas reticências, na incerteza, no calafrio...nas várias perguntas.
(maio/2008)

Para mim, é sempre mais fácil cumprir as promessas que não faço.
(fevereiro/2008)

Aos poucos encontro o chão: aquele em que eu piso, e aquele que eu sempre fui.
(outubro/2007)

O segredo que guardo, guardo dela, e ela só pode desvendar sozinha, por isso é que jamais eu o escreveria aqui.
(Primeira postagem -agosto/2007)